Já está no ar minha coluna de outubro no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre o genial escritor russo Fiódor Dostoiévski – o Pai da minha Santíssima Trindade literária -, o outro e a verdade.
Confira!
(Ah, e se você não leu a coluna de setembro, aproveite a oportunidade ;))
Eu, o outro e a Verdade, segundo Dostoiévski
Por Ricardo Mituti
Costumo dizer que na minha Santíssima Trindade literária, Fiódor Dostoiévski é o Pai. Gosto tanto dele que até meu filho de 8 anos já sabe pronunciar o sobrenome russo com invejável perfeição. Nossa calopsita só não foi batizada com o singelo epíteto de Dostô porque, no fim das contas, fui voto vencido no pleito familiar que elegeu o nome da ave.
Curioso é que não faz tanto tempo assim que li meu primeiro Dostoiévski. Meu estimado amigo, coach literário, consultor editorial e editor Paulo Tedesco, ao seu melhor estilo, decretou:
– Está na hora de lê-lo.
– Tem certeza?
– Queres ou não ser um escritor?
– Claro que quero!
– Então leia.
Comecei por “O Jogador”. Era abril de 2017. E numa época em que ninguém sequer pensava em pandemia, eu lia a história do jovem Aleksei Ivanovitch em pé, no metrô, no trajeto diário casa-trabalho-casa.
Num fim de tarde, enlatado num vagão superlotado, eu finalmente compreendi a mística em torno deste grande autor. Quer dizer, compreender não é o verbo mais adequado para explicar o que aconteceu; certo mesmo é dizer que eu senti: tive uma crise de ansiedade. E a culpada foi vovó Antonina Vassilievna, personagem do romance dostoievskiano.
A senhorinha de 75 anos, um tanto dura e pouco afável com seus interlocutores, protagonizou um perde-ganha na roleta de um cassino que foi o suficiente para me deixar com a respiração acelerada e a testa em gotas.
Por sorte, a composição já se aproximava do meu destino. Tudo o que eu queria era saltar do trem e deixar meu rosto ser tocado pelo ar que me faltava no vagão. Esta foi a primeira vez que um livro me causou esse tipo de reação.
Entendi que aquele tal Fiódor, até então temido e inatingível, tinha o estranho poder de revirar minhas vísceras com palavras. Lê-lo era ser golpeado com uma voadora no peito.
E sabe o que é pior? Eu gostei. Muito. Ser golpeado pelo russo me proporcionou um prazer que, pensei, só Sade explicaria. Mas não. O próprio Dostoiévski me ofereceu de bandeja uma resposta n’“O Jogador”: Talvez, depois de ter passado por um número tão grande de sensações, a alma não possa deleitar-se, exigindo novas sensações, sempre mais violentas, até o esgotamento total.
É isso. Esse cara sabe das coisas. Conhece como poucos o âmago da intrincada alma humana. Sua arte é uma inesgotável fonte despertadora de afetos, sentimentos e reações.
Intenso que sou, encontrei meu norte em Dostô. Tanto naquele com quem mais me identifico, o filosófico e psicológico de obras como “O Sonho de um Homem Ridículo” e “Os Demônios”, mas também no onírico de “Noites Brancas”.
Para além de sua própria obra, o velho Fiódor ainda me fez a gentileza de escancarar as portas da Rússia, por cuja literatura me apaixonei desmedidamente – ao melhor estilo russo, registre-se.
Foi rápido e fácil me encantar com a singularidade de Liev Tolstói, o realismo de Anton Tchekhov, a simplicidade de Nikolai Leskov e até mesmo com as narrativas fantásticas de outro Nikolai, o Gógol – uma verdadeira façanha, neste último caso, em se tratando de alguém tão hermético quanto eu.
Ainda não cheguei a Aleksandr Púchkin – por muitos considerado uma espécie de pai de todos -, Ivan Turguêniev e Mikhail Bulgákov, para citar apenas três dos russos que esperam para ser retirados da estante. Mas foi Fiódor quem me desnudou a Verdade (com “V” maiúsculo) sobre a minha existência e a do outro, tão imprescindível para que eu me torne cada dia mais humano. Primeiro com vovó Antonina Vassilievna, que, mesmo às avessas, recordou-me que eu estava vivo. Depois, com o Homem Ridículo, que em sua quase mortal busca pela Verdade – talvez a mesma que me foi revelada pelo autor – cravou em minh’alma um inquietante pensamento: (…) se você uma vez conhece a verdade e a enxerga, então sabe que ela é a verdade e que não há outra e nem pode haver, esteja você dormindo ou acordado.
– Pô, Dostô, de novo? Já não bastava a velhinha ter me atormentado as emoções e agora você me aparece com esse filósofo do subsolo, tornando a coisa ainda mais tensa?
– (…) a verdade só se alcança pelo tormento – arremata (e nocauteia-me) o Homem Ridículo.
Amém, Fiódor.