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Confira a crônica de outubro de Ricardo Mituti no Blog Tesão Literário, de PE

Já está no ar minha crônica de outubro no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.

Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a essência da vida e o valor das pequenas coisas a partir da personagem Macabéa, criação da densa e genial Clarice Lispector, na novela “A Hora da Estrela”.

Confira!

(Ah, e aproveite para ler as colunas anteriores):

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Oração à Clarice
Por Ricardo Mituti

 

No momento em que escrevo estas linhas, participo de um Laboratório de Leitura de “A Hora da Estrela”, novela de Clarice Lispector.

Quem me conhece sabe que tenho algum medo de Clarice. Aliás, não dela, propriamente, mas do que ela escreveu. Sempre achei Clarice perturbadora demais para um perturbado feito eu. Aprendi, entretanto, que incômodo também é expressão de afeto. E comecei a descobrir isso com a própria Clarice e sua Laura, protagonista do conto “A Imitação da Rosa”.

Mas Laura é tema para outra crônica. Voltemos a “A Hora da Estrela”. (E que fique claro, desde já, que discorrerei sobre minhas subjetividades).

N’A Hora da Estrela conheci a nordestina Macabéa. Macabéa, no pensamento mitutiano, é um não-alguém. Porque se fosse ninguém, ainda seria alguma coisa. E Macabéa simplesmente não era.

Ilustro meu raciocínio com um diálogo extraído da narrativa, entre a própria Macabéa e seu namorado, Olímpico (sim, embora um não-alguém, a moça conseguiu arranjar um companheiro por curto período de tempo – ah, as maravilhas da literatura!):

– Não sei bem o que sou, me acho um pouco… de quê?… Quer dizer não sei bem quem eu sou.

– Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?

– É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só sei que eu nunca fui importante…

Assim, fora de contexto – sobretudo para quem não leu o livro –, pode até parecer que a fala de Macabéa seja uma questão de baixa autoestima. Mas não, não é. Acredite em mim!

Macabéa foi criada por um narrador-escritor, Rodrigo S. M.. E ele próprio nos informa, ainda no início da novela, que Macabéa vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais que isso? O seu viver é ralo. Sim.

Sim, seu viver era ralo. Macabéa não era bela, não tinha instrução, morava num muquifo, alimentava-se mal e não tinha dinheiro. Pelo menos no ter, era uma lascada, como dizemos no popular. Por outro lado, Macabéa gostava de ouvir o galo cantando, encantava-se com o arco-íris e emocionava-se com música clássica – ainda que pensasse se tratar de um samba, talvez. Macabéa era, como escreve Rodrigo S. M., o tipo de pessoa que notava o capim que crescia entre as pedras do chão porque sempre notava o que era pequeno e insignificante.

Eis o que a mim surpreende nesta pequena grande obra-prima da literatura brasileira: mesmo sem ser, Macabéa acaba sendo. Explico – e, registre-se, devo essa explicação ao mestre Dante Gallian, que coordena o Laboratório de Leitura da novela, e às reflexões das companheiras do grupo, que me ajudaram a elaborar mais este intrincado pensamento mitutiano: Macabéa é um não-alguém porque transcende; é uma espécie de essência da vida; é humana sendo paradoxalmente desumanizada; é etérea sendo telúrica.

Puta merda, Clarice! (Tenho ou não tenho razão em ter medo dessa mulher, prezado(a) leitor(a)?).

E se esta crônica ainda está pouco clara e muito filosófica, peço licença para, mais uma vez, recorrer a trechos da obra para ilustrar o que quero dizer com meus devaneios.

Conta-nos o narrador Rodrigo S. M. que:

Macabéa era leve como uma idiota, só que não o era. Não sabia que era infeliz. É porque ela acreditava. (…) Isso lhe dava às vezes estado de graça. Nunca perdera a fé.

Macabéa não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver.

Macabéa pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era.

Quando o namorado Olímpico disse-lhe que ela tinha cara de quem comeu e não gostou, Macabéa, consternada, respondeu: Não sei como se faz outra cara. Mas é só na cara que sou triste porque por dentro eu sou até alegre. É tão bom viver, não é?

Eu, que não perco o infeliz hábito de maldizer a vida, quase tive um AVC quando li esse é tão bom viver no contexto de não-existência de Macabéa. E mesmo sendo uma fodida (desculpe-me, estimado(a) leitor(a), mas Clarice me faz perder a compostura!), a moça ainda tinha a coragem, com inocência de fazer inveja a qualquer criança pequena, de soltar uma pérola como esta: Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer.

Porra, Clarice! Aí quem morre sou eu! De vergonha da minha pequenez, do meu materialismo, da minha desumanização. Do me preocupar-se mais em ter do que em ser.

Mas, ora, se Macabéa é, na filosofia mitutiana, a essência, a origem da vida, a pureza perdida, o princípio de tudo, e se lembrarmos que no princípio era o verbo, então eu também morro é de vontade de macabear-me (obrigado, Caetano! Obrigado, Djavan!), de voltar a me encantar com o arco-íris, de acordar feliz e disposto com o canto do galo, de observar o capim que cresce entre as pedras do chão e notar o que é pequeno e insignificante.

Se é permitido a um leitor orar a um(a) escritor(a) falecido(a) que não tenha sido canonizado(a), então rogo à autora de “A Hora da Estrela” que interceda por este cronista desumanizado e o ajude a macabear-se. Porque se A vida é um soco no estômago, como escreve Rodrigo S. M. quase ao final da novela, tenha certeza, prezada Clarice, esteja onde estiver, que me deste uma baita surra e me deixaste (ainda mais) perturbado.

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