Já está no ar minha crônica de novembro no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a morte do diálogo e das conversas a partir de dois contos do escritor russo Nikolai Gógol: “O Capote” e “Diário de um Louco”.
Confira!
(Ah, e aproveite para ler as colunas anteriores):
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Nunca me internem numa solitária
Por Ricardo Mituti
Hoje em dia qualquer indivíduo acha que tocar no seu nome já significa ofender toda a sociedade.
Nada mais Brasil, 2021, não? Eu acho. Só que não. Por mais nacional e contemporânea que essa ideia possa soar, Nikolai Gógol, autor da frase, referia-se à sociedade russa dos anos 1840, assim retratada no conto “O Capote”. Sim, quase duzentos anos depois, qualquer semelhança com a realidade tupiniquim não parece ser mera coincidência.
Que fique claro, de largada, que esta é apenas a minha opinião – ainda que você não a tenha pedido e pela qual, provavelmente, não tenha apreço algum. E é importante que isso fique mesmo claro porque, ao que tudo indica, muita gente já não sabe mais discernir fato de opinião. Ou é isso, ou estou emburrecendo.
Mas sigamos, porque o cerne da questão não está exatamente na incapacidade de tal discernimento. A problemática implícita no trecho da narrativa de Gógol, quando abrasileirada e transportada para os nossos tempos, remete-me à perda da capacidade de diálogo.
A comunicação, que num esquema bastante simplista deveria se dar a partir dos elementos emissor, mensagem e receptor, parece estar se reduzindo a algo do tipo “eu falo e você só me escuta, porque o que eu falo é um fato (e não uma opinião), e tudo mundo sabe que contra fatos não há argumentos”.
E ainda que a famosa máxima seja questionável e a pessoa em questão consiga distinguir fato de opinião, sabe-se lá por que diabos muitas vezes, ao falar sobre o que pensa a respeito de algo, ela simplesmente replica a lógica acima, impondo seu ponto de vista como verdade absoluta e rechaçando qualquer tipo de oposição.
Eis aqui um curioso paradoxo: em meio à proliferação desenfreada e ensurdecedora de vozes (ou talvez justamente por isso, vá lá), vivemos algum tipo de pandemia da surdez opositora. Eu falo, mas não quero te ouvir. Sobretudo se o que você tem para dizer é diferente do que eu disse – e, portanto, do que eu penso.
Há sempre alguém, contudo, que resolve ir para o embate. E nesses casos, muitas vezes, a coisa – sim, porque geralmente o que se desenrola é uma coisa, e não um diálogo – descamba para a grosseria.
Mais uma vez, “O Capote” parece nos oferecer uma justificativa quase antropológica – e assustadoramente profética, em se tratando de Brasil 2021 – para esse tipo de comportamento: E mais tarde, muitas vezes em sua vida ele estremeceria ao perceber o quanto há de desumano no ser humano, quanta grosseria feroz existe às escondidas num ambiente culto, requintado e, meu Deus!, até naquelas pessoas que a sociedade reconhece como nobres e honradas.
Seja grosseria feroz, ódio, autossuficiência desmedida, desumanidade ou a consequência de uma realidade sordidamente doentia e tresloucada (e, claro, não apenas num ambiente culto e requintado e por parte de pessoas nobres e honradas), fato é que aqueles que assim agem estão enterrando o que Gógol julgava ser, ao que parece, uma das experiências mais incríveis, prazerosas, humanizadoras e essenciais da existência.
Um narrador criado por ele, advertindo seu(sua) incauto(a) leitor(a) ter extraído a ideia de uma obra literária de cujo título não se recordava, escreve o seguinte: Eu acho que dividir opiniões, sentimentos e impressões com outras pessoas é a maior felicidade do mundo.
Pois é, eu também acho (e, lembrando, achar denota uma opinião, e não um fato). E acho, ainda, deveras curioso essa passagem estar inserida num conto intitulado, veja só, “Diário de um Louco”. Porque, numa paródia às avessas do famoso o inferno são os outros de Sartre, se os sãos são os outros, que assassinam o diálogo, e o louco sou eu, então que me arrastem numa camisa de forças, mas que jamais me internem numa solitária, sem ter com quem conversar.