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Confira a crônica de abril de Ricardo Mituti no Blog Tesão Literário, de PE

Já está no ar minha crônica de abril no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.

Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a autoconhecimento a partir de um curioso imbróglio que tive com minha terapeuta. Para isso, evoco duas incríveis personagens do belíssimo “O Conto da Ilha Desconhecida”, do escritor português José Saramago.

Confira!

(Ah, e aproveite para ler as crônicas anteriores; basta clicar no mês: setembrooutubronovembro, dezembrojaneirofevereiro e março).

 

Vou trocar minha terapeuta pela mulher da limpeza e pelo homem do barco
Por Ricardo Mituti

 

Semana passada, pela primeira vez, eu discordei da minha terapeuta.

Na hora experimentei um certo estranhamento. Mas quem foi que disse que terapeuta sempre tem que ter razão? Por acaso isso está escrito em algum lugar – num manual de psicoterapia, talvez? Porque, se está, é certo que esse livro eu nunca li. Tenho a sensação que a premissa “terapeuta fala e paciente concorda” é apenas mais uma obra ardilosa da minha própria consciência (ou seria do meu inconsciente?), ainda muito previsível e quadradinha.

Bom, quem quer que tenha sido o responsável por tal elaboração, fato é que discordamos. Amigável e educadamente, mas discordamos.

Ela me disse crer – baseada em teoria, pelo que entendi – que conseguimos nos autoconhecer por completo. Dá uma trabalheira danada, admitiu, mas que é possível, é.

Não acho, foi o que comentei. Disse que o ser humano é inabarcável.

Fosse eu genial feito Dostoiévski, teria respondido com mais classe, densidade e filosofia: o homem é vasto; vasto até demais. Mas, claro, não fiz. A meu modo, prossegui dizendo que precisaria de umas 45 encarnações para conhecer a mim mesmo. E que se assim seria num processo de autoconhecimento, quão impossível não seria conhecer o outro, tão ou mais multifacetado do que eu, ainda quadradinho demais.

Creio que não a convenci. Talvez meus argumentos tenham sido deveras pessoais – ou metafísicos ao extremo – para fazê-la ao menos refletir a respeito.

Entretanto, o que minha terapeuta não esperava é que eu encontraria na literatura (sempre ela a me salvar!), inadvertidamente, argumentos a meu ver irrefutáveis para retomarmos o tema em nossa próxima sessão (agora tente me imaginar esfregando as mãos, com um sorriso levemente sarcástico).

Ao reler pela enésima vez o lindíssimo “O Conto da Ilha Desconhecida”, de Saramago, para um Laboratório de Leitura que coordenarei neste mês, voltei a me encontrar com duas das personagens mais incríveis da literatura universal, na minha singela opinião: a mulher da limpeza e o homem que queria um barco.

Se você não conhece essa narrativa, sinto muito, antes de mais nada. Mas, para seguir aqui comigo, basta saber que o homem queria um barco porque almejava encontrar uma ilha desconhecida. A mulher da limpeza, por sua vez, saíra pela porta das decisões do palácio real onde trabalhava para, às escondidas, tentar embarcar nessa aventura.

Isto posto – e espero, sinceramente, que você vá atrás d’O Conto assim que terminar de ler esta crônica -, não consigo parar de pensar nas possíveis reações da minha estimada e imprescindível terapeuta depois que eu ler para ela o seguinte diálogo entre essas duas personagens: (…) quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és (…).

Se porventura ela trouxer Freud exatamente para dizer que isso de “sair de si” ainda não combina muito bem com minha “quadradice”, vou responder o seguinte:

(…) homem da terra que sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas.

Se depois disso ela invocar Jung, Lacan ou até mesmo Sócrates para nossa conversa, aí será chegado o instante do disparo fatal:

– E que tal essa? (…) é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios.

– E aí, psi? (é assim que a chamo, carinhosamente) O que me diz agora?

Depois dessa sequência literal e literariamente mortal, se ainda assim ela insistir que uma vida é tempo suficiente para atingirmos o Everest do autoconhecimento, então sairei do consultório pela porta das decisões, certo de substituí-la pelo homem que queria um barco e pela mulher da limpeza. Nem que para isso eu precise esperar 45 encarnações para tentar contratá-los diretamente com o próprio Saramago.

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