Já está no ar minha crônica de abril de 22 no blog Tesão Literário, no portal pernambucano Ver Agora.
Na Lego Ergo Sum deste mês, falo sobre a fé a partir do diálogo entre duas obras bastante distintas, porém com o referido ponto em comum: o poema “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e o conto Natal na Barca, da imortal Lygia Fagundes Telles, presente no livro “Antes do Baile Verde“.
Confira!
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A fé dantesca em Lygia Fagundes Telles
Por Ricardo Mituti
Já escrevi, neste Tesão Literário, que não gostei de “A Divina Comédia”. Mas para ser fiel contigo, que se dá ao trabalho de ler-me, e comigo mesmo, devo admitir que uma passagem, em especial, sensibilizou-me deveras: quando, no canto XXIV do Paraíso, Dante Alighieri dialoga com São Pedro acerca da fé.
Ao ser indagado pelo santo sobre o que era a fé, Dante evoca São Paulo e diz que a fé é a substância das coisas esperadas e o argumento das coisas não aparentes. Pedro, então, responde-lhe: “Estás certo se, como ele [São Paulo], sentes/a Fé, e primeiro as suas razões procuras/fundamentais, e após as evidentes”.
O poeta florentino desenvolve o raciocínio nas estrofes subsequentes: “As coisas profundas e puras,/que permitem-me aqui [no Paraíso] ter sua visão,/aos nossos olhos lá [na Terra] são tão obscuras,//que só existem por nossa convicção/na qual se funda a esperança que temos,/e de substância toma o nome então;//e é só sobre essa crença que podemos/argumentar, sem termos outra vista,/donde o nome argumento que lhe demos”.
Encantei-me com a singeleza de toda essa elaboração. Mas o que mais despertou minha atenção, mesmo, foi a ideia de sentir a fé, mencionada por São Pedro. Sim, porque homem de pouca fé que sou – ainda que assumidamente sensível –, sobretudo para questões religiosas e espirituais, há tempos vinha procurando ter ou encontrar a fé, antes de senti-la.
Creio sempre ter compreendido a fé como uma possibilidade a ser conquistada, quase como um bem material que almejava possuir, muito mais do que algo infundido como virtude por uma graça santificante, tal qual define a Igreja Católica, denominando-a como uma das três chamadas virtudes teologais, juntamente com a esperança e a caridade.
Pois é. Esse papo entre Dante e São Pedro acendeu um sinal amarelo no meu âmago. E meu intelecto, que ainda me assemelha muito mais a Tomé do que a Paulo (convertido) ou Pedro, entrou em polvorosa, como você deve imaginar.
No meio dessa arrastada crise existencial (mais uma para se achegar às tantas que já me assolam), deparei-me com a notícia da morte de Lygia Fagundes Telles. E por mais paradoxal que o momento soasse, a literatura da grande dama chegou em meu socorro.
Ao saber da morte da escritora, recordei-me imediatamente do conto Natal na Barca, presente no livro “Antes do Baile Verde” – de sua autoria –, e da mulher de Lucena, interlocutora da narradora.
Natal na Barca foi a narrativa que mais me fez chorar ao longo de toda minha existência de leitor. E chorei não apenas pela tristeza que senti em algumas passagens, mas também pela forte comoção que a fé em Deus da mulher de Lucena causou em mim.
Esta mulher havia perdido um filho de quatro anos, fora abandonada pelo marido e carregava um bebê doente nos braços em plena noite de Natal, ambos passageiros de uma barca humilde, rumo ao médico que poderia salvar a vida da criança. Ainda assim, mostrava-se firme em suas convicções, muito mais do que resignada com as tragédias que lhe acometeram em sucessão:
– A senhora é conformada., dirigiu-se a ela a narradora, não sem alguma espécie de compaixão indignada com todos os acontecimentos relatados pela interlocutora.
– Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
– Deus – repeti vagamente.
– A senhora não acredita em Deus?
– Acredito – murmurei.
E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…
Um outro Dante, o Gallian, meu Mestre e amigo, criador do Laboratório de Leitura, diz que ter fé e esperança é próprio do humano. Eu, ao voltar a Natal na Barca, convenço-me que se sobra humanidade a essa personagem sobre-humana concebida por Lygia, a mim, quase um verme, portanto, não caberá outro lugar no futuro (se houver, claro!) que não seja o Inferno ou o Purgatório de Alighieri. Porque por muito menos do que experimentou a mulher de Lucena, não foram poucas as vezes em que duvidei da existência de Deus, desisti de ter ou encontrar a fé ou declarei-me ateu ou agnóstico. Aliás, vira e mexe eu ainda me pego atormentado por todas essas questões, possibilidades e mistérios da transcendentalidade.
Para minha sorte – e para que eu não me considere tão verme assim –, Lygia também parecia ter uma relação ambígua, digamos, com o mistério da fé – como, afinal, proclama-se na liturgia da Igreja Católica.
Em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, publicada há 22 anos (leia aqui), a escritora declarou que gostava muito de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” – do ateu José Saramago, registre-se. Disse, ainda, que também gostava dos agnósticos: eles são apaixonados por Deus. É uma negação da paixão. Negam e se dedicam a isso, se entregam. É a forma de paixão mais revolucionária que existe.
Lygia não disse ser religiosa, mas declarou-se espiritualista – às vezes crente na reencarnação, outras vezes no que denominou transmigração das almas. Por outro lado, falou que acreditava na reza e que tinha paixão por alguns santos; citou Santa Terezinha para questionar se, de fato, a vida terminaria ou não no instante da morte; e admitiu que não ia à igreja, mas que achava a Páscoa a festa mais linda que existe, a festa da ressurreição. Isso é uma coisa que me anima, me fortalece. Senão a vida fica insuportável.
Diante desse mix de crenças, dúvidas e possibilidades acerca da transcendência, a entrevistadora perguntou a ela o que achava que seria em outra vida, já que a ideia da ressurreição a ajudava a viver e já que cria na transmigração das almas. Lygia não poderia ter se saído melhor: Não vou dizer, de repente um anjo ouve isso, e eu evoluí, já quero ser outra coisa. É preciso obedecer o mistério.
Ora, se até a grande dama da literatura brasileira – que deu à luz a mulher de Lucena, dantesca em sua fé paulina, e com maestria tratou do papel dessa fé na formação humana –podia experimentar a fé na transcendentalidade por essa ampla gama de perspectivas e questionamentos, por que comigo – que até me deparar com o diálogo entre Dante Alighieri e São Pedro ainda buscava chegar à fé como se chega a algum destino geográfico, físico – teria de ser diferente? Não sei. Talvez porque tenha achado, prepotente que sou, que já estava suficientemente humanizado para ser ungido. Ou, quem sabe, porque ainda não tinha tido a humildade de reconhecer que, por mais que me esforce para ser menos pragmático, no fundo ainda sou um impostor enquanto humanista, cartesiano e imanente demais para sentir (sim, sentir!) que não existo só porque penso, mas justamente porque sinto – ainda que, para meu desespero, siga sem conseguir sentir sequer a brisa da fé da mulher de Lucena, legada pela genialidade plural e humana da literatura de Lygia Fagundes Telles a incrédulos feito eu.